Cavalcantis em Florença

Parte I




Segundo fontes antigas, os Cavalcantis descenderiam de quatro irmãos cavaleiros e barões, que saídos do Castelo de San Giglio, da cidade de Colônia, teriam acompanhado Carlos Magno no ano 774, acabando por se estabelecer em Florença e proximidades. Carlos Magno vinha a chamado do papa Adriano, proclamando-se rei dos francos e dos lombardos. (1)
É do ano 1000 o registro oficial do primeiro Cavalcanti, Domenico. A partir daí a história de Florença se confunde com a dos próprios Cavalcanti.
Desde 1115 a cidade é uma República comandada por um conselho - Senhoria- e, em postos de administração, os Cavalcantis logo se destacaram. (2)
Nos fins do séc. XII os Cavalcantis ocupavam, com suas moradias e comércio, as proximidades do Mercado Novo, se espalhavam em ricas propriedades pelas vizinhanças da cidade: o castelo de Stinche em Val de Greve, o de Montecalvi em Val de Pera, o de Ostino e Luco no Valdano superior. Até hoje está de pé famosa casa na via Rossa, marcada com as insígnias dos Cavalcanti: cruzetas, características dos cruzados. Era uma das famílias mais ricas de Florença, unida pelo casamento a outras famílias vizinhas de nobreza feudal (3). É de 1214 o registro da sociedade de banqueiros Cambi-Cavalcanti. (4) Crescera a cidade, como pólo econômico e comercial.
Entretanto, os conflitos entre “guelfos” e “guibelinos”, defensores do papado ou defensores do Império, marcaram a vida florentina no século XIII. Atuando no partido "guelfo”, os Cavalcantis vinham já deixando a cidade pela intensidade das lutas políticas de 1248 e 50, que acabaram mobilizando a população num transitório primeiro governo popular. Tem a família, por fim, grandes baixas na batalha de Montaperti (1260), entre Florença e a Siena guibelina, quando cerca de 10.000 mortos teriam banhado o rio Arbia. (5)
O ramo familiar do famoso poeta Guido Cavalcanti, amigo de Dante Alighieri, é arruinada por esta derrota guelfa em Montaperti e Guido confinado em Sarzane, em 1301. Dante, também, é exilado no ano seguinte. Os Cavalcanti, então, aliam-se ao partido popular dos Cerchi, núcleo do novo partido dos “brancos” que se opõem aos” negros”, versão disfarçada dos anteriores guibelinos. Estes eram liderados agora, por Corso Donati. No cume dos acontecimentos, em 1302 , Masino Cavalcanti é torturado e assassinado pelos “negros”. (6).
Finalmente em 1304, Carlos de Valois, por ordem do papa, entra em Florença e massacra os ”brancos”. A zona de moradia e comércio dos Cavalcanti arde em fogo, temos assaltos e destruição dos castelos nas proximidades da cidade, pertencentes às antigas famílias aparentadas dos Cavalcanti, em Greve, val de Pesa, e mesmo nas propriedades agrícolas de Ostina e Luco, por incitação dos “negros”. Neste castelo, morre Francisco Cavalcanti, “Il Guercio” (o Vesgo), referido por Dante na Divina Comédia. Lembram os cronistas aquele episódio: quando a fúria popular abateu “sui Grandi, ebbero rase al solo le case”; “in quela notte i Cavalcanti persero il cuore e il sangue”. Há novamente grande êxodo dos Cavalcantis de Florença e só poderão retornar à cidade em 1307, comprometendo-se a não portar suas insígnias por ocasião das festividades de São Giovanni, para evitar conflitos. (7)
Ainda no séc. XIV, a revolta popular dos cartadores de lã, os ciompi, intervindo no poder entre 1378-1382, exigindo mudanças nos critérios de poder das guildas, abalou ainda mais as relações sociais dos Cavalcanti. Mudanças de nomes dos Cavalcanti ocorrem neste período, de maior poder das guildas menores. Nesta segunda metade do século têm os Cavalcanti, remanescentes naquela cidade, uma vida difícil, tentando mesmo esconder sua origem magnatícia (nobre), denominando-se Malatesti, Ciampolo, Cavallereschi, Papero, Cavalleschi, para poderem ocupar cargos públicos. (8)
Entretanto, por suas origens tradicionais, continuam eles a se unir com famílias florentinas renomadas como a de banqueiros Acciaioli ou Guerardini. No ano 1416 se encontram, mesmo, aparentados dos poderosos banqueiros Medici, pelo casamento de Lourenço de Medici, o Velho, com Genebra di Arrigo Cavalcanti. (9) Outras famílias de banqueiros tradicionais, ainda com prestígio, Bardi, Peruggi, Albizzi, estiveram ligados por amizade ou casamento, com os Cavalcanti.
Nas raízes mesmo do ramo Cavalcanti, “Cavalleschi”, que virá para o Brasil estaria Fellipo di Antonio Cavalcanti atestado em 1459 e seu filho, Lorenzo di Filippo Cavalcanti, casado na proximidade dos anos 1480 com uma Peruggi, Contessina. (10)

Parte II

Desde o início do séc.XII, lembramos, Florença se constituíra numa República em que pesem as divergências internas e externas, como observamos.
No séc. XV, porém, entre 1434 e 1494, os Médici, banqueiros de origem recente mas já poderosos, cortejando as camadas populares, haviam tomado de fato o poder, estabelecendo o período chamado de Ouro de Florença, ainda com maior desenvolvimento financeiro, comercial e artístico. São famosas as obras dos artistas da época, marcas do Renascimento, por eles incentivadas e encomendadas. Entretanto atraindo capitais judeus para concorrer com grupos florentinos no comércio, finanças e produção (11), os Médici absolutos haviam atraído insatisfação, conspirações e tentativas de morte, tendo em vista apeá-los do poder.
Já nos anos 1440, o reconhecido historiador Giovanni Cavalcanti (1429-1452), em sua “Segunda História de Florença”, tece severas criticas a política de Cosmo de Médici. Mas em 1478, na conspiração Pazzi, em que seu irmão Juliano foi assassinado, Lorenzo de Médici consegue escapar com o auxilio, ainda, de dois Cavalcantis, Andréa e Lorenzo, seus escudeiros e, possivelmente, seus parentes. (12)
Em 1495, com o perigo da ocupação de Florença por Carlos VIII, rei da França, auxiliada pela omissão dos Médici, o frade radical Savanarola, cujos sermões de moralidade e contra o luxo eram prestigiados pela população, vê a oportunidade do retorno de uma república popular - o poder realmente em mãos do “conselho dos cidadãos“ - num governo de inspiração teocrática. Em 1497 e 1498, em Florença, são já queimadas nas praças centrais objetos de arte, telas, tecidos de luxo. Savanarola acaba interditado pelo papa Alexandre VI como herege e, em 1498, ele mesmo é queimado, com outros dois frades, em praça pública. Porém, em 1504, a estátua nua do Davi de Miguelangelo é ainda colocada em frente ao Palazzo Vechio, na Piazza dela Sognoria, como símbolo desta república resistente. Alguns Cavalcantis participaram do Conselho Maior da Comuna Republicana. Giovanni di Nicolo Cavalcanti e Mainardo di Bartolomeu Cavalcanti, tiveram cargos dirigentes. (13) Mas o período de plena República termina em 1512.

Já no ano seguinte os Médici estarão de volta ao poder.

Mas este poder será, em 1527, mais uma vez, contestado pelos persistentes florentinos, ano em que o imperador Carlos V saqueia Roma e humilha o papa Medici. Os florentinos aproveitam a oportunidade e iniciam um novo e curto período da chamada Segunda Republica, quando a cidade infelizmente é tomada pela peste e sitiada, por onze longos meses, pelas forças imperiais. Deste novo governo, por fim bastante radicalizado, Mainardo Cavalcanti e seu filho Bartolomeu di Mainardo Cavalcanti (Baccio) também participaram. O jovem Bartolomeu teria nesta ocasião, conseguido evitar a destruição da Igreja de São Lorenço símbolo da casa Medici. Seu pai, Mainardo, e Malatesta Baglione sustentaram, ao final, a capitulação da cidade (1530). (14) Já milhares de corpos jaziam insepultos fora dos muros da cidade, e a pequena Catarina de Médici, refém dos republicanos radicais, era ameaçada de morte.

Entre 1450 e 1531, os Cavalcanti teriam fornecido 13 priores à cidade.

Em 1530 os Médici, mais uma vez, voltam ao poder em Florença.
Porém, logo em 1537, Alexandre Médici é, ainda, assassinado. Seu sucessor Cosme I, de novo ramo Medici, agirá agora com extrema energia contra os defensores da República que tentavam a ele se opor. Vencida a elite no ataque do castelo de Montemurdo, muitos são decapitados no Bargello. Nestes enfrentamentos o banqueiro Felippo Strozzi e seus filhos haviam seriamente se comprometido. O cerco da resistente República de Siena, em 1554/55, pelo mesmo Cosimo I, durou quinze meses e custou a esta cidade milhares de vítimas.
Cosme I utilizava mercenários suíços para sua proteção e perseguirá inimigos políticos, até mesmo, bem longe de Florença.

Já em 1532, Bartolomeo Cavalcanti, filho de Mainardo, deixara Florença em exílio voluntário. Escritor de relevo em Ciência Política e Filosofia, atuante na luta aberta pelos seus ideais republicanos já em 37, no cerco de Siena terá ainda seu filho feito refém por Cosimo I, seus bens arrestados pelo Medici, tratado como traidor.
Em 1559, Stolto di Tommaso Cavalcanti, por participar de conjuração com Pandolfo Pucci contra Cosme I de Médici, conspiração em verdade liderada por este seu parente republicano Bartolomeo, foi decapitado. (15)

A família Cavalcanti não estará mais segura em Florença.
O poder dos Médici vai se estender, agora, até os anos 1700.

É, nesses anos conturbados da passagem dos anos 1500, em Florença, portanto, que iremos identificar e acompanhar, mais detidamente, as personalidades do ramo Cavalcanti com descendência no ramo brasileiro. Certamente as vidas destas personagens tenderão a refletir a situação de seus ascendentes na velha Florença, como observamos sempre envolvidos em profundos e violentíssimos conflitos políticos e sociais, com ideais republicanos que deveremos, a seguir, melhor analisar.


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(1) Cavalcanti, Giovanni - Istorie Fiorentine, vol. II, Tipografia All insegne di Dante, Firenze, 1838, p.45, apêndice.
Gamurrini, Pe. Eugenio - Istoria Genealógica delle Famiglie Nobili, Toscane et Umbre, Florença, 1673, pg.57e 58.
Scipione, Ammirato - Delle Famiglie Florentine , Firenze, 1615, na Biblioteca Nacional Central de Florença.
Estes três autores têm seus textos principais fotografados e expostos in Cavalcanti, Marcelo Bezerra - “La Famiglia Cavalcanti ‘, blog on line”.
Cavalcanti, Sylvio Umberto - Se Chiavano Cavalcanti, ed. eletrônica on line. O autor faz restrições a essas informações questionando a validade das fontes, apenas baseadas em tradições orais e heráldicas.
Albuquerque, Cássia Cavalcanti de, Cavalcanti, Marcelo Bezerra e Doria, Francisco Antonio: ‘Cavalcantis: na Itália e no Brasil’, ed. Eletrônica on line, segundo os autores, em breve, no prelo.
(2) Maquiavel, Nicolau – História de Florença, ed. Musa, 1998 – o autor omite, certamente por necessidade política de agradar aos Médici, o papel relevante dos Cavalcanti na história de Florença, que são citados apenas quando impossível omitir seus nomes.
(3) Cavalcante de Cavalcanti, cônsul da comuna de Florença em 1176, possivelmente casado com uma Adimari, teria sido dono dos castelos de Lugo, de Ostina e de Stinche. Seu filho Adimaro Cavalcanti, cônsul de Florença em 1202, casado com uma Amidei, teria sido dono do castelo de Montecalvi, herança de sua avó, filha do Conde Guido de Modigliani. Cavalcanti, Marcelo Bezerra e outros –opus cit., pág. 7, citando fontes.
(4) Cavalcanti, Sylvio Uumberto – opus cit ano 1214 citando Vatti, G.- “Montieri, notícias históricas”. A citação freqüente da obra de Sylvio H.Cavalcanti é devida a sua centralização das referências que dizem respeito à família Cavalcanti na Itália, bem como o critério de confiabilidade de suas fontes.
(5) Cavalcanti, Sylvio Umberto - opus cit., anos 1248,50 a 1280.
(6) Cavalcanti, Sylvio Umberto - opus cit., anos 1300 a1302.
(7) Cavalcanti, Sylvio Umberto - opus cit., ano 1304 a 1307.
(8) A mudança de nomes dos Cavalcanti ocorre durante o período de maior poder das guildas menores entre 1379 e 1381. Ver Cavalcanti, Sylvio Humberto - opus cit. Anos referentes.
(9) Cavalcanti, Sylvio Umberto - opus cit., ano 1416 .
(10) Doria, Francisco Antonio – “Tabela Genealógica dos Cavalcanti“, gentilmente cedida pelo autor. Cavalcanti, Marcelo Bezerra - La famiglia Cavalcanti- artigo “La Famiglia Cavalcanti”, blog on line.
(11) Revista Morasha - artigo, março 2004 ed. 44. Projeto Arquivo Medici. Arquivo do Grão Ducado dos Médici, on line.
(12) Cavalcanti, Sylvio Uumberto- opus cit., ano 1478. Recentemente o genealogista Francisco Doria, em seu blog, supôs que este Lorenzo, que ajudou a salvar o Magnífico, poderia ser o do ramo vindo para o Brasil, casado com uma Peruggi, pai de Giovanni, avô portanto de Felippe que vem para o Brasil. Entretanto por Cavalcanti, Sylvio Humberto – TávolaCavlcantiFirenze, on line, a paternidade destes dois Lorenzo não coincidem, ainda que possam ter vivido na mesma década.
(13) Cavalcanti, Sylvio Umberto–opus cit., anos referentes.
(14) Cavalcanti, Sylvio Umberto- opus cit., anos, referentes, citando Luttazzi-Gregori. O autor lembra ainda que Mainardo Cavalcanti seguia as idéias republicanas di Nicolo Capponi, do qual era amigo. Lembramos que Nicolo Capponi, rico comerciante participou em 1527 da administração pública no ultimo período republicano em Florença. Capponi foi apoiado em 1527 por Clarice Medici-Strozzi e seu marido o banqueiro Felipe Strozzi, já então em conflito com o lado prepotente de seus parentes da família Medici.
(15) Cavalcanti, Sylvio Umberto – opus cit., anos referentes.Consultar também Torres, Rosa Sampaio – artigo em blog http://rosasampaiotorres.blogspot.com/ “Conspiração Pucci & Cavalcanti”.